Tuesday, September 26, 2006

En.fim

Deu no jornal. O mundo vai acabar.

Com pompa e circunstânica, a autoridade competente pede calma. O câmera treme.

As ruas já estão vazias, sem o som angustiante de antes. Buzinas, gritos, sirenes e tiros compunham sinistra sinfonia.

Os canais saem do ar. Voltaremos em breve, diz o letreiro um tanto otimista. Saio. Não levo chave. Nos ouvidos, Jimi Hendrix.

O frio percorre meu corpo. Acendo um cigarro. No horizonte, a fumaça se entrelaça com nuvens e estrelas. Os sinos da igreja se fazem lembrar.

Sem rumo, sei bem onde quero chegar. As horas não fazem mais sentido. Enfim, a existência ganha o seu. Sombrio, clareia os pensamentos.

Ao que parece, todos se foram. Explusos pelo medo, não fazem jus à racionalidade com que foram brindados. Fogem da morte, já mortos.

Emolduradas pela ofegante luz dos postes, residências arrombadas e lojas saqueadas jazem solitárias. Os carros, abandonados, continuam engarrafados.

Ando de encontro à lua cheia, em parte escondida pela curvatura. Imponente, observa de camarote o momento que passamos a vida esperando e por toda eternidade tememos.

Não sei quantos minutos me restam. Por mais que sejam poucos, são muitos. Mas os segundos que faltam mal completam um minuto.

É chegada a hora. Como se pincelado, o céu muda de cor. Lembra um dia nascendo.

Monday, September 04, 2006

Bala

Dizem que, precedendo o fim, um filme passa em nossas cabeças.

A bala, expulsa do revólver, toma o rumo dos meus miolos. Definitivamente, não é das mortes mais dignas.

Girando sobre o próprio eixo um tanto cambaleante, o projétil pede passagem no ar, deixando um rastro encantador.

Penso no futuro. Sempre fui um sarcástico. A morte, agora, não assusta. Não mais considero o irremediável remediável.

Milésimos se transformam em segundos. Deus, em uma grande alegoria. As perguntas ficam sem respostas, apesar do ponto final, firme em sua trajetória.

Ao contrário da bala, nada do passado me vem à cabeça. Nenhum arrependimento, nenhuma alegria. Só uma certeza.

Erros, acertos e ninguém para me julgar. A consciência, sob as vestes de um juiz, consolida o livre arbítrio.

Parece mais um curta-metragem.

Sunday, August 13, 2006

Euforia

Abro os olhos. Os tubos incomodam menos que o excesso de branco. Uma das enfermeiras me olha e esboça um sorriso. Se aproxima, coloca uma das mãos - com a outra ajeita o cabelo - sobre o meu braço e pergunta se estou bem. Palavras não me faltam, mas a capacidade de pronunciá-las sim. Na falta de uma resposta adequada para a pergunta, só me resta sinalizar com a mão que sim, apesar de tudo estou bem. Mas a mão parece estar mais preocupada com a agulha que lhe fura a pele e nem se mexe. Tento movimentar a outra e o resultado é o mesmo. As pernas também me ignoram. Entendo, com alguma serenidade, que só me resta a visão.

Ao meu lado esquerdo vejo um buquê de flores. Nele, um cartão escrito eu te amo. Reconheço a letra. As lágrimas vêm acompanhadas de um profundo sentimento de incapacidade. Não consigo enxugá-las e a minha visão embaça. Nem o fato de não falar ou não me movimentar trouxe tanta angústia. Mas a enfermeira - sorte minha - logo percebe e suavemente limpa meus olhos. Não posso mais chorar.

Meus olhos são tudo que tenho. A visão ganha uma dimensão até certo ponto eufórica. As cores funcionam como drogas e mesmo um pequeno movimento age tal qual um catalisador. As sombras fogem do meu entendimento. Ela entra no quarto. Chorando, se aproxima e com as duas mãos acaricia minha face e beija. Suas lágrimas caem no meu rosto mas eu não choro. não posso chorar.

Mas nem que quisesse choraria. A complexidade de sentimentos que me invade é assombrosa. Ela é um anjo. Minha alma nunca experimentou tamanha euforia. Seus lábios, umidecidos pelas lágrimas e pelo beijo, são esplêndidos. Os olhos ganham contornos inimagináveis que somente agora se tornam tangíveis.

Uma catarse se apropria de meus pensamentos e paralisa minha visão. Ela, no quadro perfeito.

Eu, em completo transe, extasiado, apaixonado, choro. Não podia chorar.

O Julgamento

Todos reunidos, o sol faz brilhar as grades e o silêncio não vem fácil. Julgar os pares não é lá muito agradável, a toga não lhes cai bem. Afinal, ali todos são inocentes e a regra é solitária, sem a exceção para fazer companhia.

A acusação é uma dívida. O malandro vendeu uma mercadoria e não recebeu pagamento. Malandro samba mas não perdoa. Procurou quem de direito e fez a queixa. O júri, alinhado, não senta mais no banco dos réus. O alívio não transparece, ofuscado pelo nervosismo. O juíz, incomodado com o calor da cela, pede que apressem os procedimentos.

O malandro espera que o júri sentencie. E ele execute. Errar é humano, mas ali dentro não tem perdão. A defesa inventiva e apaixonada, a acusação dura. Crua e dura. O júri se fita aguardando um consenso. Consenso irreparável, de dar orgulho aos juristas mais apaixonados. A lei é aplicada de forma implacável. Inapelável. A lei da cadeia não é cega. Lá, o crime não foge à vista.

Julgado, subjugado, vê o seu atestado de óbito. A grade, como sempre, impede a fuga. Morto, ao contrário de sua dívida, ainda viva. Defunto não paga, mas a honra do malandro é elevada. Os sentenciados sentenciam e assim segue a cadeia.

No próximo capítulo, Brasília, onde ladrão também julga ladrão e todos se dizem inocentes.

Basta

"É doutor, seu titanic afundou,
quem ontem era caça hoje, pá, é o predador
que cansou de ser um ingênuo, humilde, pacato
empapuçou, virou bandido, não deixa barato"
Racionais MC´s

Vejo um assalto na minha frente, bem debaixo do meu nariz. Uma senhora, de aparentes 50 anos, agora sem cordão de ouro e celular, sai do carro assustada. Gritando contra a injustiça, acha inconcebível ser assaltada na Lagoa Rodrigo de Freitas. A que ponto chegamos? A ousadia dos criminosos não tem limites, nem a Zona Sul está segura. Provavelmente, será mais uma a estender na varanda de seu apartamento uma faixa com a palavra BASTA escrita em vermelho sangue. Deve achar que assim está cumprindo seu dever cívico de protestar contra a violência que assola a outrora cidade maravilhosa. Para denunciar a violência sofrida, uma faixa e muitos gritos. Para denunciar a sonegação e lavagem de dinheiro do marido, nem uma palavra. Um silêncio complacente regado a champanhe. Silêncio este que se estende aos gritos, com tons de sangue vermelho, que vêm de fora da Zona Sul. Vêm das favelas, das periferias que, por mais altos que sejam, não encontram ressonância nos jornais preferidos da zona sul. Gritos afônicos. Cobertura de jornal, nesse caso, só para os cadáveres.

Quando um filho da Zona Sul morre, dá-lhe passeatas, protestos e gritos indignados. Mobilização devidamente coberta pela imprensa. Quando morre alguém na favela, o silêncio fúnebre lhe é destinado. Nenhuma passeata na praia, ninguém vestido de branco. Afinal, estamos acostumados com mortes em favelas. Já faz parte da rotina carioca. O filho da empregada pode morrer. Deve ser ladrão, envolvido com o tráfico. Um a menos. Mas quando o filho da madame que vai no morro comprar maconha e pó morre, luzes, câmera, ação, o espetáculo da indignação vai começar. Como ninguém pensou nisso antes? Para acabar com a violência, passeatas!

A miopia da Zona Sul carioca se alastra como epidemia. Se não faz parte da solução, seja bem-vindo à parte do problema. Os vidros fumês devem embaçar a visão da realidade. Para mudá-la, não adianta virar a cara quando alguém bate no vidro do seu carro. A realidade continuará lá. Inalterada. Injusta. De nada adiantam as grades dos condominios, os vidros blindados, os seguranças, as passeatas. A realidade aqui fora continuará igual. Desigual.

Em um Rio de Janeiro onde ecoam gritos e silêncios, a corda nem sempre arrebenta pro lado mais fraco.

E eu, de braços abertos sobre a Guanabara, nada posso fazer.

Voto Nulo

Muito se fala do voto nulo. Quem assim vota, declara sua indignação com a política brasileira. Sim, há muitos motivos para tal. Como alguém bem resumiu, desmoralizaram até o escândalo. E o motivo para tamanho deboche é bem simples.

Nos anos FHC, o PSDB tinha o a oposição petista sempre com o dedo acusatório em riste. Ao primeiro indício, lá vinham os petistas, com um novo estoque de denúncias. Algumas comprovadas, outras infudadas e umas tantas por investigar. E agora que o pt é governo, cabe aos tucanos o papel de acusador. Por trás da oposição petista, havia uma áurea simbolizando a ética. O que há por trás da oposição tucana, senão um passado sombrio, banalizando e impossibilitando qualquer crítica?

Queira ou não, o partido dos trabalhadores era o grito da ética que ecoava no palácio do planalto quando lá morava FHC. E quem hoje grita contra os inúmeros desmandos petistas? Os tucanos estão afônicos. O passado embarga a voz que denuncia. Era deles o papel de âncora ética na relação de poder hoje constituída.

A população, atordoada por tantos escândalos, enfim se manifesta. Uma população historicamente anestesiada desperta para a politica de maneira trágica. A parcela com maior poder de critica do eleitorado resolve fazer campanha pelo voto nulo. Pelo visto, deve ser mais fácil declarar indignação que ignorância.

Muitos dos que pregam o votam nulo, apesar de maior acesso à informação, não entendem, e muito menos querem entender, a política brasileira. A discussão é superficial, viciada e raramente construtiva. Ao invés de entender a política, essas pessoas preferem repudiá-la. O problema é que essas mesmas pessoas têm suas decisões influenciadas direta e indiretamente pela política.

O raciocinio é, mais uma vez, bem simples. Se todo mundo é ladrão, não voto em ninguém. Descobriram a regra, esqueceram da exceção.

Os eleitores reclamam dos políticos. Eu, de cá, reclamo dos eleitores.